domingo, 28 de outubro de 2007

PORQUE DEUS EXISTE . . .

Porque Deus parece mesmo existir ... deu-se a possibilidade de Maria da Conceição Caleiro apresentar um texto sobre a poesia de MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA, especialmente mergulhando por sobre O Canto do Vento nos Ciprestes (Ed. Gótica) ás bibliotecas de oeiras:

MICROFÍSICA DO AMOR
Estes poemas repetem, cada um, a irreparável dor amorosa,
a irreparável espera femina por algo que não cessa de não chegar

“O Canto do Vento nos Ciprestes”, o segundo livro de poesia de Maria do Rosário, relança a delicadeza lírica do anterior, a pouco e pouco aqui desenganada - é que a partir de certa altura “os degraus só se podem descer”.
Habitualmente, na poesia lírica o sujeito que enuncia existe, ou constitui-se, enquanto sensitividade momentânea, epifania local de uma emoção contigente, de uma impressão que o próprio poema conclui. Habitualmente também, o tu emerge apenas no contexto de uma experiência lírica particular, dissipa-se no fim de cada poema, e, ao contrário do romance, não lhe costuma ser ficcionalizada uma substância, nem um enredo, nem sequer simulada a duração de personagem.
É claro que aqui se repete a tensão, que escapa à dialéctica, entre o singular e o universal e cada poema se situa no equilíbrio frágil entre a contingência e o que se exclui ao tempo, mas, para além disso, ou mais do que isso, neste livro, sob o mesmo “ethos” detecta-se estranhamente uma história (por isso deve ser lido de fio a pavio e não aleatoriamente como tantas vezes se faz com a poesia). A inscrição no tempo deste sujeito que enuncia liricamente um amor, a sequencialidade de um mesmo amor, transporta-nos para o universo da ficção, da simulação de identidades psicológicas mais ou menos estáveis deste eu e deste tu ,capazes de serem percebidos quase como personagens. Mas, ao mesmo tempo, uma poética intemporal do próprio amor se vai desenhando, insistindo sempre, tantas vezes em belíssimos versos no fim de cada poema (eles próprios, se isolados, poderiam constituir títulos de uma sequência narrativa).À medida que se lê este livro de Mª do Rosário Pedreira, dois versos de Ruy Belo ecoam, tornam-se quase seu emblema: “é triste no outono concluir/que era o verão a única estação”.
“O verão desarruma os sentimentos”. “Nesse Verão” (porque o discurso simula escrever-se a partir de um agora textual muito mais disfórico), o imaginário do amor e da natureza animizada que o suporta era ainda expansivo, solar, febril, inflamado e contagiante. Embora sobre ele pairassem “sempre brumas e nevoeiros/e profecias de temporais maiores”, “um temor que desmaia as pregas do vestido e um sortilégio/urdido nas paisagens suspensas de um mapa que aperto/na mão sem desdobrar.”Mesmo assim, “quando na tua boca cantou subitamente uma voz”, o dia emudeceu e “então, foi possível ouvir o vento soprar nas asas das borboletas”, “é no momento que encerra a beleza de um gesto/que se prolonga a vida”. O curso dos dias interrompe-se, o instante suspenso reencontra a eternidade, e “pode pintar-se o retrato do vento/no esquadro da janela.”. Nesse tempo, que se encena anterior, o amor não podia ainda ser dito, “nenhum poema/podia ser o chão da sua casa”, “há coisas assim,/que não se rendem à geometria deste mundo”. Só a partir da ausência (da dor?) se escreve. Nos poemas que a seguir se sucedem uma mesma impossibilidade amorosa se repete e adensa, uma mesma disforia se vai estendendo. Como se se tratasse de um fio constante que se expande e diversifica através de deslizes elementares, variações incessantemente contíguas (por isso talvez a metonímia seja uma das figuras emblemáticas da autora), desvios sintácticos de palavras num só verso que surpreendem a normatividade semântica. E nesse fio aparentemente contínuo e idêntico, em que se vai desenrolando e intensificando uma história, suspendem-se microscopicamente momentos mínimos de perfeição verbal (irresistivelmente:”tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar”; “talvez procure ainda um gesto teu nos braços”).
“Neste outono”, tu começaste a partir e no meu corpo começaram a gelar os lugares de onde a tua mão se ausentou. Escreve-se a efemeridade do amor. A natureza vai-se animizando de um modo cada vez mais agreste ou recolhido.Repete-se todo um imaginário do eu, do amor e do mundo nocturno, frio, térreo, rasteiro, a desabar ou em rarefacção, do lado do peso e da queda: “as pedras agasalham-se no cobertor/do musgo”e o vento passou a viajar “rente aos muros”, e “se te pergunto o caminho(...)/Contas que a noite geme nas fendas/dos penhascos porque as cidades apodrecem junto/às margens; que o vento é um chicote que desaba/os chapéus; que a terra treme; que o nevoeiro cega; e/ que as casas onde o medo se extinguia na longa bainha do/vestido da mãe cederam ao peso das mádoas dentro delas” e ainda “que não há/mapas para os sonhos de quem morre de amor”. O eu produz cenários da sua própria morte e da morte do outro (“a morte separa-nos da dor e da sua memória”). Aliás, ao longo destes poemas o sujeito que enuncia torna-se sujeito do seu próprio luto. Multiplica figuras do desdobramento em que o eco, o sonho, apenas o teu nome (“como um músculo tenso/escondido sob a pele”) ou o espelho lhe devolvem a identidade, tal como uma voz que se continua depois da morte lhe restitui a eternidade.
Recorrente e renovadamente, a escrita fala de si e da existência que através de dela o destinatário textual destes versos guarda, porque “o poema é o único refúgio onde/ podemos repetir o lume dos antigos encontros” e a “tua sombra”, ou “o teu silêncio”, ou os teus despojos mantêm acesa uma ideia de amor assim (impossível não relembrar David Mourão-Ferreira - “Nas teias da ficção ficarás presa/e acordarás, mais tarde, na surpresa/de ser outra por toda a eternidade").

Sem comentários: