terça-feira, 1 de julho de 2008

Ontolologia Poética !! [Em Continuação]

O Problema de Ser Norte, em Filipa Leal

Torna-se, todavia, impossível doar ao verso a palavra original, a que está antes de tudo e de todos na casa do ser (Heidegger). Por isso, no poema O Homem que existiu instala-se, na fímbria de cada verso, uma melancolia branca provocada pela impossibilidade do retorno à surpresa genesíaca do primeiro homem em face do segredo do cosmos, à revelação do nascimento da palavra, sopro criador, verbo sagrado (“hoje /nenhuma palavra pode ser escrita,/ nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras”, diz-nos Al Berto no poema vestígios, para acrescentar mais à frente que “apesar de tudo / continuamos a repetir os gestos e a beber / a serenidade da seiva (…) / e / o mistério da luz fustiga-nos os olhos / numa euforia torrencial”, enquanto para Mallarmé devemos Proférer la parole pour la replonger dans son inanité):

Havia uma íntima surpresa na palavra do início.
Por exemplo: a primeira palavra
mar. Quem a teria escrito? E a primeira palavra palavra.
Quem teria escrito palavra pela primeira vez?
Eu buscava nas palavras já escritas a surpresa
do início do poema, e isso era triste
como brincar com coisas mortas. (O homem que existiu, p. 18)

Apesar ou para lá do diálogo, sempre presente, do poeta com outros poetas, a noite de Filipa Leal não é a noite do questionamento existencial de Antero, nem a expressionista de Cesário Verde, tão-pouco a dos sonhos reais do estilhaçar do Eu de Fernando Pessoa ou a da catedral em celulóide e da arquitectura de asas de Al Berto, mas a noite do “escuro absoluto” (p. 13) que defronta a insónia da cidade e responde dicotomicamente à “muita luz que as coisas tinham”, noite-corpo que no princípio de tudo se abraçava e beijava “na testa” e em que a actual “falta de jeito” para o que ilumina parece impedir ou afastar a presença da estrela em o Diário à noite suposta:

(Primeiro dia) Eu não tinha estrutura, não tinha claridade.
Eu não tinha holofotes que chegassem, braços que chegassem.
Eu não tinha luz.
Uma estrela, já se sabe, precisa de luz.
Alimenta-se da sua circunferência, do seu tom periférico.
Uma estrela precisa de iluminar. Foi isso. Foi a minha noite.
Foi a minha falta de jeito. (Diário à noite suposta, p. 36)

Se a noite do verso provoca a fuga, abrindo um espaço de ausência, de perda e de incapacidade da estrela iluminar a noite-corpo da palavra, nasce porém aí o desejo da escrita como salvação bíblica, como possível negação do medo (o medo, cuja presença confronta-se com o ser norte), como palavra do primeiro dia de uma ausência (Le seul moyen de n’être pas malheureux, c’est de t’enfermer dans l’Art et de compter pour rien tout le reste, escreveu Flaubert):

O que eu queria mesmo era escrever para me salvar.
Para não ter medo.
Para te perder melhor. (id., p. 37)
IN "FILIPA LEAL – “O PROBLEMA DE SER NORTE”,
UMA ONTOLOGIA POÉTICA.
"Texto do colaborador «das Artes das Letras»
Jorge Costa Lopes;

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