quinta-feira, 17 de julho de 2008

SUPRA-Visão final de «O Problema de Ser Norte»

{Em Continuação}
Destacamos a noite, mas não esquecemos o indagar pela alba da palavra e do ser, bem como a tarde passada com a criança vinda do mar, depois do rio e do verde matinais, criança-aparição de Teve nessa tarde uma criança (p.16), e que, no milagre do infinitesimal durar antes e depois da ausência, inviabiliza a linguagem, a possibilidade do poema e, sobretudo, a criança anterior do poeta que habita na memória da casa antiga perto do lago (p.14). Breve instante em que a mão da criança conquista um território único na mão da escrita. A suspeita paterna provocada por aquela mão estranha na mão da criança sobrepõe-se, porém, ao perigo da mão vazia, do território vazio da criança vista no interior da tarde, “quando ia caindo/o sol” (p.16). E abrem-se fendas de medo no muro caiado que rodeia a infância, medo que a mão que segurou a da criança descobriu e inscreve agora no seu caminhar pela linha fonética da tentativa de poema.
Na poesia de Filipa Leal há igualmente livros que flutuam no entendimento (p. 12), lidos de frente para o mar. E neles lemos as andorinhas que precisam de ser avisadas quando o amor se esvaziou de palavras e de sentido (pp. 38-39); lemos os caminhos de terra, na geografia da legenda da infância (pp. 14 e 16); a cidade com uma aldeia no centro, aldeia construída na efemeridade dos sonhos da palavra do dia seguinte em papel de jornal (p.32); os mapas estranhos dos prédios habitados (p.33), e das ruas que violam as arquitecturas da alma (p. 34). Mas não lemos nunca a traição ao poema, como ironicamente anuncia Filipa Leal em Traindo o poema:

Juro:
eu tinha prometido não escrever este poema.
Não gosto de supermercados,
nem de poetas de supermercado,
mas hoje enchi a casa de manteiga e
não pude evitar uma sensação de metáfora,
uma ironia a escorregar-me nos dedos
como anúncio de contemporaneidade. (…)
E juro: apesar da traição,
sinto-me hoje mais contemporânea do que nunca. (p. 24)

No sorriso da metáfora, escutamos aqui, intertextualmente, a confissão de Horácio a Augustus no livro segundo das epístolas: “Mas este povo superficial mudou de gosto e hoje só se apaixona pelo furor da escrita. Todos, Romanos, crianças, graves pais de família, sentam-se à mesa, com a cabeça coroada de louros e recitam versos. Eu próprio, que afirmo não fazer versos, apresento-me mais falso do que os Partos, e de pé antes do nascer do sol, exijo penas, papel, a caixinha dos manuscritos. (…) mas todos indistintamente, sábios e ignorantes, fazemos versos.”
E como permanecem mudos os velhos teatros sagrados (Hölderlin), indiferentes à nossa competitividade, recebemos mensagens como aquele SMS (simbólico poema de um só verso), de Filipa Leal, à hora do princípio da noite na cidade: Porto. 20h. Ninguém canta. (p. 35)
E como ainda não descobrimos os vestígios dos deuses foragidos, no tempo da noite do mundo (Heidegger), necessitamos da Poesia e de tempo para fruir a indizível alegria do poema em tempos de indigência, porque a “melancolia é uma questão de falta de tempo” (p. 19). Posto tudo isto, a ontologia poética de O Problema de Ser Norte revelou-nos o lugar de uma voz única na – chamemos assim e para abreviar – nova poesia portuguesa.

IN
"FILIPA LEAL – “O PROBLEMA DE SER NORTE”,
UMA ONTOLOGIA POÉTICA."
Texto do colaborador «das Artes das Letras»
- Jorge Costa Lopes;

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